Passado/Presente

a construção da memória no mundo contemporâneo

Archive for Agosto, 2007

Aquela vontade de ir

Posted by Rui Bebiano em 24-08-2007

Jack Kerouac A poucos dias de se perfazerem cinquenta anos sobre a sua saída em 5 de Setembro de 1957 para as livrarias americanas, um pequeno dossiê do suplemento Ípsilon rememora o impacto da primeira edição portuguesa de On the Road, de Jack Kerouac, lançada em 1960 pela Ulisseia com o título Pela Estrada Fora (numa tradução de Hélder dos Santos Carvalho, morto novo quando vivia em França a sua própria experiência «na estrada»). Num pequeno volume da colecção Découvertes Gallimard, Alain Dister sublinha o desconforto da viagem à boleia – ou em auto-stop, como se lhe referiam os jovens portugueses «francófilos» da década de 1950 –, relembrando a fadiga, o desconforto, o aborrecimento, o frio, a chuva, o perigo, mas recorda também como, para a geração que tomou On the Road como bíblia da perpétua deslocação, tudo isso era facilmente trocado pela sensação de liberdade, de procura e de vertigem que esta sempre possibilitava. A estrada de Kerouac, na sua imensidão, na melancolia dos cenários imutáveis ao longo de centenas de quilómetros, mas também no inesperado que a qualquer instante a podia cruzar, transformava-se na grande metáfora para uma vida em movimento que uma parte da juventude americana e europeia das décadas de 1950-1960 antevia como cenário da descoberta da felicidade, mas que fechará simbolicamente em 1969, com Easy Rider, o road movie de Dennis Hopper marcado já pela visão desencantada, pós-hippie, do fim da utopia.

O destaque dado neste conjunto de artigos a alguns portugueses que, por aquela época, perseguiram essa bela quimera, faz todo o sentido. Mas aquilo que não é referido, e que, por isso, valerá a pena lembrar, é que num país periférico, silenciado e fechado ao exterior como o era Portugal, esse desejo de evasão pela viagem se processou principalmente por vias bem diversas da procura individual e descomprometida dos membros da beat generation e dos seus discípulos. Aqui, para a esmagadora maioria das pessoas, e principalmente para os jovens urbanos e com alguns estudos, quando até a própria boleia era olhada com desconfiança por boa parte da sociedade e pelas autoridades, a vontade de fuga materializava-se principalmente nos consumos culturais possíveis – em especial naqueles mais solitários, proporcionados pela leitura, pela música, ou, em menor escala, pelo cinema – ou, no limite, na experiência da fuga através da imaginação de locais idealizados a partir de referências físicas que iam de Nova Iorque e Paris a Moscovo e Pequim. Os nossos beatniks ter-se-ão contado pelos dedos e permaneciam invisíveis, por muito que hoje se possa fantasiar acerca do seu papel ao longo da década e meia que antecedeu a revolução de Abril.

Também em A Terceira Noite

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A «orquestra negra»

Posted by Miguel Cardina em 21-08-2007

Em 1981, Margarethe von Trota realizou Die Bleierne Zeit, uma visão ficcionada sobre a vida de Christiane Ensslin e Gudrun Ensslin, miltantes das RAF / Baader-Meinhof, grupo que durante os anos setenta semeou um rasto de medo e violência na antiga parte ocidental da Alemanha. O título do filme foi traduzido para italiano como Anni di Piombo (anos de chumbo), expressão que servia igualmente para caracterizar os acontecimentos ocorridos neste país sensivelmente durante os mesmos anos. Nessa altura, grupos de extrema-esquerda e de extrema-direita, fortemente críticos da democracia parlamentar e convencidos da utilidade da violência como arma política, dedicaram-se a um conjunto variado de acções terroristas que visavam desestabilizar o ordenamento político resultante do pós-guerra.

A dia 12 de Dezembro de 1969, a bomba que rebentou no interior do Banco Nacional de Agricultura, em Milão, marca o início desse processo de tensão crescente. Eram 16.37. e a explosão causou dezasseis mortos e oitenta e oito feridos. Nos quarenta minutos seguintes, outros engenhos explosivos rebentam em Roma e Milão, provocando mais 17 feridos. O episódio ficaria conhecido como «Massacre de Piazza Fontana». À comoção imediata juntou-se a certeza policial de que por detrás do atentado estariam grupos anarquistas, nomeadamente o Círculo 22 de Março, tendo sido os seus militantes capturados nos dias sucessivos. Um deles, Giuseppe Pinelli caiu de um quarto andar enquanto era interrogado pelo comissário Luigi Calebresi. Segundo os autos policiais, tratara-se de um suicídio. Apesar dos indícios apontarem para a existência de uma «pista negra» – ou seja, a implicação de núcleos de extrema-direita no atentado – essa hipótese foi debilmente investigada. Em 1990, porém, o juiz Salvini decide reabrir o processo, conduzindo as equipas de investigação a novos e surpreendentes resultados.

Sete anos depois, em 1997, os jornalistas Fabrizio Calvi e Frederic Laurent publicam Piazza Fontana – La verità su una strage, no qual relatam o complexo de relações, conluios e objectivos das várias organizações que, de uma maneira ou de outra, estiveram envolvidas na chamada «estratégia de tensão». Desde logo, Ordem Nova, uma pequena organização extremista de direita animada por um vigoroso espírito anti-comunista e pela nostalgia relativamente à República de Saló. Mas não só. O que os autores procuram mostrar, suportados em testemunhos e documentos da época, é que a «estratégia» foi teleguiada por membro da NATO e por elementos no interior do aparelho de Estado italiano, através da Gládio, organização clandestina criada no contexto da guerra-fria e destinada a responder a uma eventual invasão soviética da Europa. Em «Orquestra Negra», o documentário que Jean-Michel Meurice realizou com base na investigação dos dois jornalistas, estes fios aparentemente soltos servem para compor uma trama policial bastante plausível.

Todavia, o filme não se detém numa linha narrativa que é explorada no livro: a existência de uma espécie de internacional neofascista, inspiradora da operação de 12 de Dezembro de 1969, e que tinha a sua sede em Lisboa. [continua aqui>>]

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O veneno que desgastou o franquismo

Posted by Miguel Cardina em 15-08-2007

Estudiantes contra FrancoNo final da década de sessenta, Carrero Blanco – o sucessor oficioso de Franco que, em 1973, seria assassinado pela ETA – definia os estudantes universitários espanhóis como seres «envenenados de corpo e alma». Em 2004, a expressão viria a ser utilizada por José Álvarez Cobelas, no título da sua importante obra sobre a oposição universitária madrilena ao franquismo e é agora evocada por Elena Hernández Sandoica, Miguel Ángel Ruiz Carnicer e Marc Baldó Lacomba – autores de Estudiantes Contra Franco (1939-1975). Oposición Política y Movilización Juvenil – para dar conta do irreversível processo de desafectação estudantil nos anos finais do franquismo.

O veneno a que se refere Carrero Blanco – a contestação das pautas ideológicas, sociais e culturais da ditadura – havia permanecido praticamente inoperante até finais da década de cinquenta. A intensa depuração que se seguiu à guerra civil, com a execução ou o exílio – físico e psicológico – de muitos professores e alunos republicanos, ajudara a sedimentar a ordem saída do alzamiento. Se o fim da 2.ª guerra mundial abriu espaço, por momentos, a uma crise de legitimidade internacional, no início da década de cinquenta a vitória consolidada sobre os últimos fogachos da resistência republicana, as relações amigáveis com a Santa Sé e o novo jogo de interesses provenientes da «guerra fria» – que levou a que os Estados Unidos passassem a ver Espanha como um tampão seguro ao avanço do comunismo – proporcionou um reforço da aceitação internacional do regime. [continua aqui>>]

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Fátima revista

Posted by Rui Bebiano em 10-08-2007

Fátima Nestes dias de calor e praia, o Público tem vindo a divulgar uma selecção de textos retirados da Enciclopédia de Fátima, obra colectiva editada pela Principia e organizada por D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, e pelo cónego Luciano Cristino, ligado ao Santuário de Fátima. Numa sinopse da obra, pode ler-se que esta pretende ser um «estudo pioneiro e interdisciplinar que aborda de forma multifacetada, científica e rigorosa os acontecimentos de Fátima». Um dos organizadores afirmou ainda que se trata de «oferecer aos interessados uma interpretação aberta, serena, crítica, teologicamente fundada e historicamente objectiva». Não vi à venda este Dicionário de mais de 600 páginas e suspeito até que seja difícil encontrá-lo nas livrarias que frequento, mas depois de ler os passos seleccionados fiquei com alguma curiosidade. Não podendo fazer um comentário crítico detalhado sem o conhecer melhor, existe porém alguma coisa, nos fragmentos que tenho lido, que me deixa razoavelmente apreensivo. [continua aqui>>]

[Original e comentários, com alguns contributos, em A Terceira Noite]

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