Passado/Presente

a construção da memória no mundo contemporâneo

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O passado em discurso directo

Posted by Rui Bebiano em 12-11-2007

Image Hosted by ImageShack.usA História da PIDE, o livro de Irene Flunser Pimentel que constitui uma versão condensada da sua tese de doutoramento e foi agora publicado pela Temas & Debates, vale, entre outros atributos, pela forma criteriosa e documentada como devolve essa sombra da nossa história recente que tende, por vezes, a ser ampliada ou então esbatida. Não, a PIDE não foi uma cópia caseira da Gestapo ou da italiana OVRA, como no-la apresenta uma certa memória heróica da resistência ao fascismo português. Mas não foi também a instituição policial «benévola», quase paternal, que o regime caído em 1974, corroborado por alguns escritos contra-revolucionários posteriores, apresentou como um mero serviço público. O conhecimento da sua verdadeira dimensão e dos seus mecanismos essenciais sai reforçado com esta obra que passa desde já a constituir um instrumento indispensável para uma compreensão adequada de um dos lados mais negros do Estado Novo e do peso dos silêncios e das cumplicidades que ele nos legou.

Este trabalho levanta, no entanto, um problema metodológico que, ao contrário daquilo que se passa por exemplo em Espanha ou na América Latina, se mantém recorrente na historiografia portuguesa contemporânea: o dos entraves colocados à utilização, ou mesmo à validade, do testemunho oral, que a autora entendeu pôr deliberadamente de parte. Utilizou, naturalmente, esse direito de se servir ou não de determinadas fontes documentais que é prerrogativa de todo o historiador. Desde que este justifique essa exclusão, o que a autora fez com clareza na introdução. Mas já me parece bastante discutível a explicação que procura dar das razões pelas quais desqualifica o testemunho oral, por si tomado, essencialmente, como «’provocado’ pelo historiador que, ao interrogar a testemunha, constrói a sua própria fonte, utilizando-a à maneira de um produtor».

Sendo verdade que este problema se coloca, ele requer, justamente, não a desistência, mas um cuidado suplementar da parte desse mesmo historiador, forçando-o a confrontar os testemunhos orais entre si e na relação com outro tipo de fontes, escritas ou não, servindo-se apenas das informações que podem ser aferidas e claramente identificadas. A própria autora reconhece, muito correctamente, que existe hoje uma «profusão de artigos que colmatam a ausência dos que foram esbulhados ou não podem ser consultados». E por «artigos» podemos entender aqui, parece-me, outras fontes que não apenas os materiais provenientes dos arquivos oficiais. Porque não então as fontes orais? Que diferença de valia tem esta por comparação como testemunho pessoal escrito? E, partindo do princípio segundo o qual não passará pela cabeça de ninguém fazer a história do Holocausto e do Gulag sem recorrer aos seus sobreviventes (sejam eles as vítimas ou seus carrascos), por que motivo se coloca a dúvida em determinadas situações e não noutras?

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Pela História Oral

Posted by passadopresente em 03-11-2007

O que é um homem no infinito? A angustiante e radical questão de Pascal não terá nunca resposta satisfatória. Sabemo-lo bem. Mas a História Oral (HO) tem, pelo menos, o mérito de aceitar o apaixonante e arriscado desafio de recentrar o papel do indivíduo na história. Através justamente da memória, a mais épica das suas faculdades, segundo Benjamim. A HO, mais do que qualquer outro ramo da história, vive, portanto, numa estrita (quase total) dependência da memória. É claro que a memória (mental, escrita ou oral) é a matéria principal da história, o que a obriga a um confronto em permanência com o imenso processo dialéctico da memória e do esquecimento, que vivem quer indivíduos, quer sociedades. No caso concreto da HO o indivíduo que rememora ou evoca o tempo vivido, fá-lo sempre de forma selectiva, o que significa que se há lembranças resgatadas, em contrapartida há outras esquecidas e excluídas de forma consciente ou inconsciente. Como escreve Fernando Catroga, «a memória individual é formada pela coexistência, tensional e nem sempre pacífica, de vária memórias (pessoais, familiares, grupais, regionais, nacionais) em permanente construção devido à incessante mudança do presente em passado e às consequentes alterações ocorridas no campo das representações do presente».

Mas a memória oral, porque pessoal e directa, tem o inegável fascínio de ser mais próxima e mais viva, se comparada com qualquer das outras modalidades da memória, além de ser absolutamente indispensável para todos aqueles acontecimentos que de uma forma ou outra surpreendem o normal curso da história de longa duração, mais preocupada com as impessoais estruturas económicas e sociais e a suas permanências seculares, do que com o tempo de curta duração do acontecimento, que subverte essas estruturas, de alguma forma curto-circuitando esse processo e invadindo a cena com protagonistas que improvisam e não são apenas figurantes que debitam um papel já conhecido. São os momentos de crise como as revoluções em que a pura racionalidade abstracta dos conceitos e dos sistemas, cede face à invasão de elementos supra ou infra racionais, como as paixões políticas, a fidelidade aos valores e aos ideais, a coragem, a honra, o respeito ou desprezo pelas instituições, os sentimentos altruístas, a sensibilidade democrática.

[por Maria Manuela Cruzeiro] [continua aqui>>]

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O canto de intervenção no combate ao Estado Novo

Posted by Miguel Cardina em 10-07-2007

José Mário BrancoNo caleidoscópio dos oposicionismos político-culturais que procuraram perturbar a ideologia e a prática do Estado Novo, o chamado «canto de intervenção» assumiu uma visibilidade que o singulariza. Configurado nos inícios da década de sessenta, através de trabalhos como os de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília, este domínio particular da música portuguesa sofreu uma importante renovação na entrada do decénio seguinte, patente na edição, no Outono de 1971, de obras como Cantigas do Maio (José Afonso), Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (José Mário Branco), Romance de um dia na estrada (Sérgio Godinho) e Gente de Aqui e de Agora (Adriano Correia de Oliveira). Nas linhas que se seguem traça-se impressivamente o percurso deste movimento nos anos finais da ditadura, deixando de lado a abordagem do papel do género musical no período imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974, bem como as mais recentes reformulações que sobre ele ou sobre a sua herança se foram e vão fazendo. [continua aqui>>]

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A Nova Esquerda na Holanda, França e Alemanha

Posted by passadopresente em 28-06-2007

Paul Lucardie é investigador na Universidade de Groeningen. Democratic Radicalism Resurrected: the New Left in the Netherlands, Germany and France foi o título da sua comunicação na conferência New World Coming: the sixties and the shaping of a global consciousness, realizada na Queen’s University, em Kingston (Canadá), entre 13 e 16 de Junho de 2007. Nela, Lucardie traça um quadro comparativo da evolução da Nova Esquerda nos países referidos entre a década de cinquenta e a década de noventa, centrando a sua análise nos «anos quentes» de sessenta. O texto, inédito, aponta as linhas centrais de uma tese de doutoramento já concluída e é apresentado com a devida permissão do autor.

All New Left movements (in the wider sense of the term) seemed to share two characteristics. In the first place, they refused to take sides in the Cold War between Western capitalism and Eastern socialism, unlike social democrats and communists who sided with the former or the latter camp. Many, but certainly not all New Leftists justified their neutralism in pacifist terms; but practically all criticized the nuclear arms race between the USA and the USSR. In the second place, all New Left groups emphasized democracy, which seemed to decline on both sides, in their opinion, and should be renewed and revitalized somehow. How this should be done, was a question that divided the New Left, especially through time. One could distinguish five stages here – going beyond the 1960s. [continua aqui>>]

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Um livro contra a fé

Posted by Rui Bebiano em 07-06-2007

Sam HarrisNão é fácil defender a importância de uma obra como esta. Quando se multiplicam os livros, discursos, colóquios, debates e números de revistas que pretendem colocar em diálogo islamismo e cristianismo, ou que intentam provar «cientificamente» que se completam, e quando a defesa da laicidade parece confinar-se à teimosia de uns quantos excêntricos fora do tempo, não é fácil declarar, e tentar demonstrar, que ambos são males transportando consigo, em quaisquer das suas múltiplas formas, a opressão e a guerra. Mas é isso que procura fazer o filósofo americano Sam Harris em O Fim da Fé. Religião, Terrorismo e o Futuro da Razão, recém-editado pela Tinta da China.

Um dos argumentos centrais deste livro aponta para o carácter negativo de um novo dogma, do qual são portadores os «crentes moderados» e também aqueles que, não sendo pessoas de fé, entendem a religião como uma área intocável e essencialmente positiva da experiência humana: uns e outros «imaginam que o caminho para a paz só será desbravado quando cada um de nós tiver aprendido a respeitar as crenças injustificadas dos outros». O que leva Harris a declarar, e a propor-se mostrar, que, ao invés, «o próprio ideal de tolerância religiosa (…) é uma das principais forças que nos arrasta para o abismo».

Numa recente entrevista ao suplemento Babelia, Fernando Savater afirma, reciclando o velho aforismo de Marx, que «mais do que ópio, a religião é cocaína». Isto é, ela não se limita a anestesiar, a entorpecer, mas é capaz de produzir estados psicóticos produtores de uma suspensão do tempo e de ilusões com um elevado potencial de violência. O livro de Harris parte também, de alguma forma, do entendimento da religião como uma doença, e como uma doença perigosa, cujo alastramento é favorecido por dois mitos que procura desarmadilhar: o primeiro associado ao facto da maioria de nós acreditar «que é possível retirar coisas boas da fé», o segundo vinculado à crença de que as coisas terríveis que por vezes se cometem em nome da religião «são produto, não da fé em si mesma, mas da nossa natureza mais ignóbil (…) em relação à qual as crenças religiosas constituiriam o melhor (senão mesmo o único) remédio». [continua aqui>>]

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Cão Andaluz

Posted by passadopresente em 15-03-2007

Por Maria Manuela Cruzeiro

Cão AndaluzO Cão Andaluz, título estranho, roubado à dupla sagrada do surrealismo Buñuel/Dali, é, como os dois anteriores livros de Jorge Seabra, um regresso ao passado com constantes projecções no presente. Uma viagem em voo rasante, com altos e baixos, avanços e recuos, em que a proximidade do olhar se paga com a dúvida e a suspeita, por vezes a surpresa e o desconcerto, de ver o que se não tinha visto, sem que isso resolva nada do que ficou por resolver.

O passado, pois – continuando no domínio da navegação aérea – como uma espécie de caixa negra da memória, o centro de todos os centros, enigma ou oráculo cujas falas, sendo as mesmas, são sempre diferentes, porque diferentes são as perguntas que o tempo lhe vai fazendo.

As primeiras páginas do livro advertem-nos quanto ao grau de perigosidade e também de ambiguidade desse desafio. Os gestos, os rostos e as histórias que a memória resgata do esquecimento, trazem o calor de um olhar íntimo e solidário, mas também o verde frio da angústia e da dúvida insidiosa. [mais>>]

Uma leitura proposta durante a apresentação pública do romance, ocorrida em Coimbra no último dia 10 de Março.

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Feminino vigiado

Posted by Miguel Cardina em 26-01-2007

Se a I República frustrara o acesso efectivo da mulher ao domínio público, o Estado Novo encarregou-se de aprofundar a identificação do feminino com as funções de «mãe», «companheira» e «fada-do-lar». No essencial, a existência da mulher condensava-se no espaço doméstico, entrincheirada entre a fidelidade e a dependência em relação ao marido e a «nobre missão de gerar os filhos da Nação». Na redacção do Código Civil de 1967, por exemplo, ainda se estipula que o abandono da residência conjugal ou a transposição das fronteiras do país não podem ser feitos sem a autorização expressa do pai ou do cônjuge. Ao mesmo tempo, a lei eleitoral, apesar das sucessivas aberturas que foi proporcionando, só na sequência da nova conjuntura proveniente do 25 de Abril de 1974 concede iguais direitos políticos a homens e mulheres. [mais>>]

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O marcelismo e a SEDES

Posted by passadopresente em 19-01-2007

Por Tiago Manuel Ribeiro

Marcelo popular

A selecção do marcelismo como objecto ou contexto de reflexão, ainda que em crescente expansão quantitativa (académica, jornalística), convoca um conjunto de problemas analíticos que desafiam as perspectivas mais acabadas sobre os fundamentos e coerências do autoritarismo estado-novista. Por um lado, o carácter residual a que parece votado subtrai-lhe a autonomia sociopolítica e redu-lo ao prolongamento artificioso de uma ordem política inalterada; por outro, leituras mais lineares do declínio do Estado autoritário, para as quais não haveria futuro que não redundasse em revolução, impediram um exame mais aturado deste período histórico, negligenciando ou desvalorizando as transformações políticas, económicas e culturais que nele se processaram.

A expectativa depositada no arranque político de Caetano, partindo das elites económicas de vocação europeísta e chegando às forças políticas progressistas, ganhou corpo no nascimento de uma organização política – a SEDES – que serviria a negociação de Caetano com os sectores mais rígidos do regime e, em simultâneo, abriria uma nova brecha política com rosto institucional, encorajadora do seu anunciado reformismo, traduzido inclusivamente na renomeação publicitária do regime: Estado Social. [mais>>]

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Elogio do esquecimento

Posted by Rui Bebiano em 25-11-2006

Entre ru�nas«É preciso esquecer para continuar presente, esquecer para não morrer, esquecer para permanecer fiel». É desta forma que Marc Augé termina As Formas de Esquecimento (Íman Edições, 2001). A declaração imperativa remata uma ideia que percorre este pequeno e precioso livro: torna-se imprescindível libertar a memória de determinados fragmentos do passado para dessa forma, em nome de um «dever da memória», poder viajar sem excessivos embaraços ao encontro daquele que se procura. Ao declarar que «a memória e o esquecimento são solidários, ambos necessários ao pleno emprego do tempo», o antropólogo convida então os seus leitores «a não se esquecerem de esquecer para não perderem a memória e a curiosidade».

O paradoxo é apenas aparente, sendo conhecida, por parte de todos os que trabalham com o passado e com a memória, esta obrigação de esquecer. Renan insistia já, num texto de 1882, no facto de a criação das nações impor o uso criativo dos acontecimentos passados, implicando esta atitude, pode acrescentar-se, a eliminação consciente de determinados elementos durante o processo de construção das narrativas históricas. Cem anos depois, Benedict Anderson mostrou como o esquecimento selectivo constitui um dos mais importantes mecanismos identitários utilizados na construção da nação enquanto «comunidade imaginada». Um processo inevitável, determinado, quanto mais não fosse, pela incapacidade de conhecer todos os fragmentos do passado e de integrar toda a sua complexidade num discursos completo, harmonioso e inteligível. Todo o «dever da memória» – incluindo aquele que integra preocupações cívicas, como as que se relacionam com a defesa das nacionalidades ou «inculpação histórica» dos crimes de guerra e das formas de genocídio – implica, pois, uma perspectiva assumidamente parcial, permeável à necessidade de esquecer.

Mas deverá esta obrigação de esquecer, de forma a investigar o acontecido, implicar o desinteresse pelas aquisições da memória abertamente induzidas pela experiência do presente? Pelo contrário. Augé declara que a experiência da memória integra a lembrança e a vigilância: «A vigilância é a actualização da lembrança, o esforço para imaginar no presente o que poderia assemelhar-se ao passado». Desta forma, é necessariamente a partir das questões que o presente levanta que se procede à escolha daquilo que deve ser observado e daquilo que deverá, momentaneamente, ignorar-se ou ser colocado como simples elemento de um distante cenário. Não é possível, por exemplo, reconhecer em profundidade os dramas pessoais das vítimas da repressão imposta pelos regimes totalitários se nos concentrarmos nos dramas íntimos e nas justificações subjectivas dos seus algozes. Ao omitir ou relevar, o esquecimento constitui-se então como uma das bússolas para viajar, com orientação e proveito, até ao passado que espera. O que não impõe uma constante reescrita da história, mas o reconhecimento da vinculação dos trabalhos de historiografia que vão sendo iniciados às dúvidas e aos problemas colocados pelo presente.

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Despojos de Berlim

Posted by passadopresente em 01-11-2006

Por Adriana Bebiano

fairy taleSessenta anos depois de ter terminado, haverá ainda alguma coisa de novo a dizer sobre a Segunda Guerra Mundial? Historiografia, literatura e cinema têm explorado os testemunhos do horror e as histórias de heroísmo até à (suposta) exaustão. Perante esta abundância, para quê mais um romance com esta guerra como matéria ou pretexto?

A história como matéria interessa a Michael Pye, historiador de formação, jornalista e romancista. Da história de Nova Iorque, por exemplo, nasceram Maximum City – The Biography of New York (1991) um trabalho de historiografia, e The Drowning Room (1996), o romance da vida de Gretje Reyniers, a primeira prostituta de Nova Iorque, quando a cidade ainda se chamava Nova Amesterdão. A escrita de Pye divide-se entre a historiografia e a ficção, duas formas de tratar uma mesma matéria que têm afinidades. O último romance de Pye, The Pieces from Berlin (2003), encontra-se agora em português, com o título Despojos de Berlim.

O sucesso contemporâneo do romance histórico em todas as suas variantes talvez se explique também porque, de alguma forma, o género satisfaz a nossa imensa curiosidade sobre vidas muito diferentes da nossa, com o seu quotidiano sempre igual. O romance diz-nos – através da imaginação, mas na verdade, diz-nos – como era a vida das pessoas que protagonizaram este ou aquele momento histórico que percepcionamos como excepcional, mais excitante do que o nosso, mesmo que essa diferença seja marcada pela dor e pelo sofrimento. Como é que era, estar no meio desses acontecimentos extraordinários, simultaneamente dolorosos e excitantes? A experiência da história, por oposição à sua explicação, que se pretende racional e distanciada, é-nos dada simultaneamente por testemunhos presenciais e pela ficção. São estas as duas formas de acesso ao passado de que dispomos, e cada uma encerra um grau de verdade. [mais>>]

Michael Pye (2005), Despojos de Berlim. Porto: Asa. Trad. de Isabel Alves. 315 pp. [ISBN 972-41-4439-9]

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Panpoliticismo, outrora

Posted by Miguel Cardina em 16-10-2006

politicaÉ um lugar-comum: só se vê aquilo que a teoria deixa perceber. Durante os anos sessenta, os marxistas de pendor mais «clássico», agarrados às ferramentas conceptuais do materialismo dialéctico, crentes no finalismo histórico e no poder messiânico da classe operária, e preocupados, por isso, em predizer uma revolução que não acontecia, impediam-se de compreender uma outra revolução que estava a acontecer, e que abarcava condições materiais, estilos de vida, relações familiares e liberdades individuais. Numa obra monumental sobre o assunto – The Sixties. Cultural Revolution in Britain, France, Italy and United StatesArthur Marwick demonstrou precisamente como os «longos anos sessenta» – período que o historiador britânico coloca entre a segunda metade da década de cinquenta e a primeira metade da década de setenta – originaram uma «revolução cultural» que, apesar de não se ter revestido das características típicas de uma revolução política e económica, não deixou de modificar com profundidade a paisagem social.

As propostas de alargamento do «político» a domínios até então insuspeitos, dificilmente encaixáveis nos esquemas teóricos do referido marxismo, acentuavam essa incapacidade de ver a realidade – ou, num registo mais suave, de valorizar as mutações que nela iam ocorrendo. De facto, opera-se, à época, uma politização quase metafísica do mundo que conduziu a novas formas de pensar, sentir e agir, tão radicais quanto distantes dos modelos propagados de transformação social. A difusão nas ruas e nas universidades do enunciado «tudo é político», potenciara uma crítica radical dos costumes, abrira lugar ao nascimento e renovação de alguns movimentos sociais – como o feminismo, o ecologismo ou os movimentos em torno da defesa das minorias e das «identidades» – e transformara o corpo e o quotidiano em questões políticas. Lugares de expressão e de transgressão, de deleite e de visibilidade. Marcuse, Reich e Fromm caucionavam teoricamente essa revolução, os situacionistas, os provos e os Yippies levavam-na até ao extremo e, no campo da «cultura de massas», Bardot e Joplin, Morrison e Dylan, a mini-saia e a pílula mostravam-na presente e difusa.

Contudo, para o puritanismo estalinista dos partidos comunistas tradicionais, estas práticas pouco tinham de «político». Eram vistas como ímpetos imaturos causados por uma objectiva posição de classe ou mesmo, em alguns casos, manifestações de desvio e dissolução moral que preconizavam a confusão entre «fazer amor» e «fazer a revolução». Uma parte dos grupos da esquerda radical pós-68 viria a recuperar e, por vezes, potenciar, este conservadorismo moral receoso de afugentar «as massas». Neste processo, teve particular importância a imagem quase assexuada da revolução cultural chinesa, que fomentou o estabelecimento, no interior destas organizações recém aparecidas, de um rígido controlo de condutas, composto por críticas e auto-críticas, por directivas visando estabelecer o comportamento adequado do revolucionário e por censuras constantes ao «liberalismo» e à «decadência» burguesas.

No contexto de uma forma de militantismo que propunha a indefinição entre vida privada e vida militante, exaltava-se o heroísmo, a abnegação e o espírito de sacrifício, características definidoras do autêntico revolucionário. O entendimento da ideia de libertação como um processo meramente colectivo legitimava, pois, a secundarização dos impulsos, dos desejos e das necessidades individuais. Estranhamente, por outro lado, em muito do empenhamento político ocorrido durante os anos sessenta no espaço comunista e radical é detectável a presença de um dos traços essenciais do universo sixtie: a colocação do corpo e da subjectividade no espaço real e imaginário da transfiguração, do risco e da aventura. Como se a prática estivesse um pouco além da teoria.

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Wunderkammer

Posted by passadopresente em 08-10-2006

Por Adriana Bebiano

Wunderkammer
Cabinet de curiosités, anónimo do final do século XVII
Opificio delle Pietre Dure – Florença

Entre os séculos XVI e XVII era comum encontrar-se, por toda a Europa, em cortes e casas aristocráticas – mais tarde, também em casas de grandes burgueses – um salão, câmara ou «gabinete de curiosidades». «Wunderkammer» – à letra, «quarto das maravilhas» – é a designação em alemão, que ainda hoje é usada em outras línguas, talvez pela particular importância que este fenómeno adquiriu nas cortes alemãs.

Podia tratar-se de um modesto armário ou de um salão, ou mesmo de vários salões, como no caso da Wunderkammer do Imperador Rudolfo II, em Praga. Nesses espaços, eram colocadas em exposição as «curiosidades», artefactos e objectos naturais, coleccionadas pelos seus proprietários. Poderia tratar-se de pássaros, ovos de aves exóticas, ossos e outras relíquias de santos, objectos de contornos não identificados mas supostamente antigos, pedras trabalhadas – mais tarde identificadas como machados pré-históricos, mas então apresentadas como amuletos – objectos de culto de outros povos, cabeças mumificadas, entre outros. Tudo o que tivesse o valor de «exótico» ou de «maravilhoso». Por «maravilhoso» aqui entenda-se o que «causa espanto», por ser estranho ao espaço e à cultura circundantes. A estranheza advinha de virem de geografias distantes ou de passados distantes. Mais exactamente, de um passado indiferenciado.

Estes objectos não eram catalogados ou sequer organizados segundo os padrões habituais na nossa cultura – que se quer «científica» e, por isso, pertinaz na procura da classificação e da arrumação de todo e qualquer objecto ou ideia. A Wunderkammer poderá, com justeza, ser considerada antepassada e progenitora dos museus contemporâneos. O famoso Ashmolean Museu, em Oxford, nasceu justamente a partir do «cabinet of curiosities» que o antiquário Elias Ashmole (1617-1692) doou à Universidade de Oxford em 1698. No entanto, a lógica que presidia à «organização» destes salões encontra-se nos antípodas da que rege os nossos museus. Os objectos eram coleccionados e exibidos de forma não sistemática, num caos celebratório da diversidade. Não havia – ou, pelo menos, no seu momento original, não havia – qualquer hierarquia organizativa, qualquer preocupação com o rigor na situação do tempo ou local de origem de cada um dos objectos, que assim adquiria um valor «em si», desprendido do seu significado de origem. [mais>>]

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Memórias inventadas

Posted by passadopresente em 07-10-2006

Por Rui Miguel Brás

Há uma questão crucial com que todas as nações têm de lidar: a memória colectiva. Os diferentes países têm diferentes formas de lembrar o passado, de mantê-lo vivo ou sepultá-lo, e são tantos os casos de manipulação dos factos como de indiferença. Quando a lembrança é boa, a questão quase não se põe. Mas quando a lembrança é má, urge perguntar: que fazer? Com o totalitarismo a questão complicou-se. Primeiro, porque a memória dos regimes totalitários era e é uma memória dolorosa e tem um peso incalculável. Depois, porque durante o século XX os Estados adquiriram um poder de manipulação dos factos gigantesco, o que socorreu os vários totalitarismos, mas também os regimes democráticos que lhes sucederam, na manutenção ou na destruição da memória colectiva.

Isaiah Berlin costumava dizer que o Holocausto só tinha tido uma boa consequência: a consciência, dupla, do ancestral anti-semitismo e do então recente fenómeno totalitário. Com o fim do Fascismo e do Nazismo, Franco e Salazar ficaram sem âncora ideológica – mesmo que, ideológica e estruturalmente, os regimes português, espanhol, italiano e alemão fossem bastante distintos entre si. Tardou o fim das ditaduras em Espanha e Portugal mas, desde o fim da 2ª Guerra, esse fim era previsível e, mais que isso, inevitável. A União Soviética, porém, ainda durou, e só em 1989, com a queda do Muro de Berlim, é que houve uma perspectiva homogénea de liberdade na Europa.

Mas o fim dos vários totalitarismos fez com que os Estados, recém democráticos, recém libertos, à deriva, tivessem de lidar com um desafio problemático: a memória. Como lembrar um passado bárbaro e sanguinário sem horrorizar as populações? Como suavizá-lo sem correr o risco de ser esquecido? Como lidar com uma realidade que, durante muitos anos, ainda há-de assombrar um povo, um país, uma identidade? A opção que se generalizou foi transformar a memória em questão cultural, fenómeno sociológico, curiosidade bibliotecária; e, simultaneamente, apagar as réstias quotidianas dos regimes. Por exemplo criar museus nos campos de concentração, mas apagar os vestígios do Nazismo da cidade, das ruas, das praças, dos edifícios. [mais>>]

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Nostos + Algos

Posted by Rui Bebiano em 01-10-2006

Por muito tempo, a nostalgia permaneceu associada ao sofrimento determinado pelo afastamento prolongado das origens, ou então à recordação insistente de um passado considerado perdido. No século XVI, certos tratadistas militares avaliaram o estado de espírito que lhe subjazia como uma doença, tendo o suíço Joahannes Hofer acabado por fixar o termo na Dissertatio Medica de Nostalgia (1688), onde reuniu as palavras do grego clássico que nomeiam dor (algos) e regresso (nostos), para se referir a «um desregulamento da imaginação, de onde resulta que o suco nervoso toma sempre uma mesma direcção no cérebro, e que, por esse motivo, se firma em uma única e mesma ideia, o desejo de regressar à pátria». Tratava-se, para Hofer, de um estado particular de melancolia, que havia conduzido uma quantidade apreciável de estudantes, criados e mercenários de origem helvética a desejarem ardentemente o retorno à região da qual haviam partido e aos hábitos sociais que tinham abandonado, descurando por isso os seus deveres. Naturalmente, esta fixação do pensamento num alhures passado não era nova – lembre-se a presença constante, na consciência de Ulisses, do lar em Ítaca – mas a enunciação da sua natureza patológica era-o sem dúvida, prevalecendo como dominantes até aos finais do século XIX e sobrevivendo na actualidade. O Houaiss associa-a ainda a formas de «melancolia profunda causada pelo afastamento da terra natal», ou a «distúrbios comportamentais e/ou sintomas somáticos», se bem que a reconheça, de uma forma menos definitiva, como «estado de tristeza sem causa aparente».

NostalgiaMas existe uma leitura mais recente, e positiva, que a reconhece como momento de deleite ou enquanto veículo de esperança. O New Oxford Dictionary of English encara-a já como «um anseio de natureza sentimental ou uma ávida atracção pelo passado, tipicamente por um período ou um lugar com o qual se torna possível estabelecer associações agradáveis». E a russa Svetlana Boym atribui à atitude nostálgica, em The Future of Nostalgia, um significado mais denso e de uma natureza não necessariamente negativa ou doentia. Distingue, porém, aquilo a que chama de «nostalgia reconstitutiva», preocupada com a recuperação ou a «reconstituição» do passado, de uma «nostalgia reflectida», a qual procura ultrapassar o limiar da história, imergindo, voluntária ou involuntariamente, «nos sonhos de um outro lugar e de um outro tempo». Aceita-a também, de uma forma optimista, como modalidade daquilo que designa por «emoção histórica», extremamente sensível, como acontece com todas as emoções, às constantes flutuações da psicologia individual e colectiva, mas dotada igualmente de virtualidades dinâmicas, tanto no processo de interpretação do mundo – seja ele o passado ou o presente – como na forma de nele interferir. Indo mais longe ainda, Pam Cook considera, num livro que aborda a conexão entre nostalgia e cinema, que mesmo «não sendo progressiva em si mesmo», a primeira «pode fazer parte da transição para o progresso e a modernidade», através de um procedimento que designa como «let’s pretend»: os eventos do passado como que são «reconstituídos» perante uma audiência do presente, estabelecendo, por intervenção voluntária desta última, uma conexão dinâmica entre ambos os tempos, aquele que terá sido efectivamente vivido e o que é essencialmente representado. Um filão imenso para quem pretenda reconhecer os efeitos dinâmicos do passado e as formas de processar, contemporaneamente, as suas releituras.

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