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a construção da memória no mundo contemporâneo

1968: o ano do abalo

Posted by Miguel Cardina em 01-10-2006

Mark Kurlansky, 1968Porque é que em 1968 se assistiu a uma erupção abundante de tumultos, quase todos motivados por um sentido radical de recusa do existente? Partindo desta interrogação tácita, o jornalista americano Mark Kurlansky rememora, num registo solto e refinado, a história política e cultural destes doze meses que «abalaram o mundo», como sugere o título original numa alusão ao livro de John Reed sobre a revolução bolchevique de 1917.

É a realidade americana que serve de modelo de abordagem, ocupando, aliás, mais de metade dos capítulos do livro. Se isto pode parecer, à primeira vista, uma fraqueza do texto, por outro, o desenho do clima político-geracional que atravessa os territórios americanos permite dar conta de uma série de fenómenos que não deixaram de ter impacto noutros países. De facto, uma das razões da coincidência cronológica da rebeldia está precisamente na existência de uma cultura juvenil, partilhada por faixas crescentes das juventudes urbanas escolarizadas em diferentes latitudes, uma boa parte dela proveniente dos Estados Unidos da América, e que era agora difundida a larga escala pelos meios de comunicação de massa. Uma cultura juvenil difusa circulava com intensidade o que explica, de certa maneira, o apelo do New York Times na Primavera desse ano: «para aqueles que têm menos de trinta anos, Praga é sem dúvida o sítio onde se deve estar este Verão» (p.325).

Às revoltas estudantis, topos incontornável dos discursos sobre este período, Kurlansky dedica uma parte significativa do texto. Polónia, França, México, Checoslováquia e Estados Unidos da América são, neste particular, os territórios analisados. Não há, contudo, a intenção de ler “68” tendo apenas como referência aquilo que nos campus universitários ia sucedendo. Ao invés, Kurlansky procura efectuar um desenho das mudanças ocorridas nesse «momento de assombrosa modernidade» e de «ingenuidade quase pitoresca» (p.19) que, nos mais variados domínios rejeitava um mundo autoritário, herdado das cinzas da II Guerra Mundial.

Apesar da perturbante sintonia cronológica com que ocorrem uma série de acontecimentos, o autor constata a inexistência de fios visíveis de comunicação entre os diferentes actores em jogo. Em Praga ou em Varsóvia, por exemplo, os jovens que lutavam pela liberdade de expressão e que condenavam o carácter pró-soviético dos governos dos seus países, descobriam, com estupefacção, que estavam a utilizar métodos e conteúdos por vezes bastantes similares aos que eram empregues pelos jovens do outro lado da Cortina de Ferro. Daí que se caracterize 1968 como um momento histórico marcado por um difuso «desejo de rebelião, uma sensação de recusa da ordem estabelecida, e um profundo desagrado perante todas as formas de autoritarismo» (p.17).

Como explicar então esta eclosão simultânea de rebeldia? Kurlansky aponta um conjunto de influências comuns partilhadas pelos diferentes actores, colectivos e individuais, deste turbilhão geracional que engloba sob a capa genérica de «Nova Esquerda». Desde logo, ela parece possuir uma série de ídolos de dimensão universal, como Marcuse ou Che Guevara, e outros que, saindo das fileiras estudantis, rapidamente se transformam em líderes informais, como é o caso de Mario Savio, Daniel Cohn-Bendit ou Rudi Dutschke. Por outro lado, o autor assinala ainda dois fenómenos, que perpassam a sociedade americana durante aos anos sessenta, e que se mostraram fundamentais na formação política dos novos activistas: o movimento pelos Direitos Civis e a Guerra do Vietname. Mais imperceptível, mas não menos importante, é ainda o papel da televisão, que alguns movimentos contestatários desde cedo souberam utilizar como arma política, estava a transformar definitivamente o mundo numa «aldeia global», expressão que Marshall McLuhan havia criado neste mesmo ano.

Assemelhando-se por vezes a um diário retrospectivo, o texto raramente se aventura na elaboração de sínteses teóricas. De Vaclav Havel a Bob Dylan, de Allen Ginsberg à Ofensiva de Tet, dos Panteras Negras à Espanha franquista, de Yasser Arafat a Abbie Hoffman, somos conduzidos através de uma longa e atraente excursão por factos e personagens cujo enfoque, em modo de reportagem alargada, deixa por vezes a sensação de uma certa carência interpretativa. Contudo, esta escrita fragmentária apoia-se numa rara capacidade de recuperar o vivido que, sem cair no sentimentalismo da memória, faz deste 1968 um fresco espantoso desse ano terrível e confiante.

Mark Kurlansky (2005), 1968. El año que conmocionó al mundo. Barcelona: Destino. 557 pp. [ISBN: 84-233-3706-5]

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